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Elisoval Fortunato carrega nas mãos calejadas de trabalhador e no olhar atento de artista a mesma matéria-prima: a vida como ela é. Aos 57 anos, natural de Goiana, na Zona da Mata Norte, ele tem alguns de seus quadros expostos no canteiro da Perimetral, obra realizada pelo Governo do Estado em parceria com a Prefeitura de Olinda, ali pertinho da PE-15, onde trabalha na área de serviços gerais.
Mas é quando volta para casa, em Maranguape II – Paulista, e empurra a porta do próprio ateliê que reencontra o menino que, aos oito anos, descobriu que desenhar era uma forma de enxergar o mundo.
Autodidata, Fortunato explica que começou desenhando, e sempre teve um olhar muito atento aos detalhes, contando com as paisagens e trabalhadores rurais, seus vizinhos, e das festas de momo, com suas apresentações de maracatu de baque solto, como elementos de inspiração para o seu desenho.
“Tudo nasceu através do olhar. A própria natureza me passa essas informações. Foram as vivências, o cotidiano”, conta ele, lembrando de quando ainda criança e as pessoas se surpreendiam com seus desenhos. Quando questionado sobre como conseguia reproduzir profundidade e perspectiva sem nunca ter estudado a técnica, ele disse que também não sabia explicar, apenas fazia, apenas tentava reproduzir nos quadros aquilo que via, com a profundidade de planos que via.

Da mesma forma, o artista explicou que também não saberia explicar a técnica em uma sala de aula, e que seu processo criativo é muito natural.
Esse sentir continuou guiando seus passos até Olinda. Ele recorda que, aos dez anos, quando a família se mudou para o Recife em busca de novas oportunidades, chegou primeiro ao Recife, e lá descobriu um universo inteiro no Recife Antigo.
“Quando eu cheguei, na época, era uma grande movimentação de carga e descarga de navios”, lembra. Mais tarde, em 2012, ao revisitar o bairro, decidiu pintar uma tela que misturava o antigo e o novo, um gesto de retomada da própria história.
Olinda como ponto de virada
Mas foi em Olinda que a vida artística ganhou corpo. A cidade, que o acolheu ainda menino, com seus dez anos de idade, virou para ele uma musa inspiradora.
O artista conta que, ao chegar, passava temporadas desenhando ora no Mosteiro de São Bento, ora no Alto da Sé, ora descendo para os Quatro Cantos e para o Mercado da Ribeira.
Olinda vivia, naquele final dos anos 1970 e início de 1980, a movimentação que precedia o reconhecimento de Patrimônio Mundial. Turistas, troças, artesãos, cantadores de viola, tudo fervilhava.
Foi ali que uma admiradora pediu seu primeiro quadro. Ele só fazia desenhos, mas um senhor, artesão, entusiasta, quase um padrinho, conseguiu pincéis e telas para que o menino pudesse tentar.
“Eu tinha uns 12 anos”, recorda. “Comecei desenhando, mas os desenhos eram bem apurados, buscando mínimos detalhes.” Não demorou para perceber que, além de talento, aquilo podia ser também uma forma de ganhar algum dinheiro, ainda que tudo seguisse no improviso.

Da Zona da Mata às ladeiras de Olinda, Elisoval começou a transformar aqueles desenhos em quadros. Sempre seguindo algo muito intuitivo, desenvolvendo uma técnica e estilo prórpios, e sempre com a premissa de trazer elementos culturais do contidiano, das ladeiras de Olinda, do carnval, com memórias da infância, com os personagens do maracatu rural.
Alguns anos depois, já adulto, ao pintar o Mosteiro de São Bento, voltou ao sentimento da infância. Lembrou das capelas antigas dos engenhos, da pintura descascada, das paredes queimadas pelo tempo.
“Veio um sentimento de nostalgia, uma carga de saudosismo no momento em que eu pintava”, diz. O resultado foi um mosteiro com cores que não existem na paisagem, mas existem nele.

Esse mesmo impulso afetivo está numa de suas telas mais marcantes, pintada em 2012, que ele chama de “Encontro de Culturas”. Inspirada nos primeiros dias em que subia e descia as ladeiras de Olinda durante o Carnaval, a obra reúne ritmos, personagens e imagens que o moldaram.
“Quando cheguei em Olinda havia festa por todos os cantos”, conta. “Foi onde tudo começou, onde dei meus primeiros passos como pintor.”
Nesse trabalho, aparecem Luiz Gonzaga, Marinês, Capiba, caboclos de lança, figuras de maracatu e personagens comuns que povoam sua memória.
Não é acaso. “Falar em carnaval era falar em maracatu”, diz ele. O maracatu rural, com suas raízes nos engenhos, na cana-de-açúcar, nos folguedos populares, faz parte da sua história como quem fala da própria casa. Ele não integrava nenhum grupo oficialmente, mas era brincante, bastava ouvir o batuque para correr atrás.
Sobre os detalhes em sua obra, ele destaca: “na arte o que me dá prazer é trazer um realismo, mas um realismo que seja poético.”
O realismo poético que ele busca surge justamente desses encontros: Zona da Mata, Olinda, as festas, as ladeiras, os mestres populares, a saudade da terra natal.
Hoje, Elisoval tenta organizar um acervo de doze telas que contam a própria trajetória, da infância entre engenhos à descoberta das possibilidades na capital, passando pela força estética de Olinda, sua grande musa.

Quando perguntado sobre preço e a venda de suas obras, ele explicou que no momento não precifica seus quadros, pois entende que, para isso, eles precisariam passar por exposições, para que passem pelo clivo de críticos, museólogos, jornalistas, agentes que possam validar essas obras e as técnicas, para que elas passem a ter lastro para serem precificadas e vendidas.
A secretária de Patrimônio, Cultura e Turismo de Olinda, Marília Banholzer, convidada pelo secretário de Gestão Urbana, Manoel Carlos, para conhecer a obra do artista, ficou entusiasmada ao ver os quadros de Elisoval no canteiro. Foi ela quem primeiro sinalizou a importância de contar a história de Fortunato e destacou o fato de ele ser um autodidata que representa Olinda com autenticidade.
Marília planeja organizar uma exposição com os quadros do artista na Casa do Turista de Olinda, logo após o período carnavalesco.
Enquanto isso, ele segue pintando todos os dias, depois do expediente no canteiro.
“A arte não é só pegar a tela e jogar as coisas. É um sistema”, diz. Um sistema que ele enfrenta com paciência, sem perder o fio da própria história.
E essa história, como ele faz questão de repetir, tem Olinda como norte. As ladeiras, os casarões, as troças, o Sítio Histórico, tudo continua alimentando seu imaginário. A cada volta pela cidade, um detalhe novo aparece. E de detalhe em detalhe, Elisoval vai construindo sua arte.